Profissionais de Saúde estão a tratar Computadores e não de utentes…

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Desconheço se os alunos das escolas de saúde que escolheram serem profissionais de saúde (enfermeiro, médico, técnico de saúde) o fazem por  vocação ou se é simplesmente uma opção, que pode estar relacionada com mil-e-um motivos, desde o económico ( pura falácia) ou pela contínua mentira de ser um dos poucos trabalhos que tem garantido emprego no nosso país. Mas independentemente destas opções que terão levado muitas pessoas à profissão de Saúde, relembro médicos, enfermeiros, técnicos de saúde, auxiliares, administrativos (…) existem algumas características, que segundo a minha perspectiva, são necessárias nunca desaparecerem, nomeadamente a comunicação, empatia e a humanização.

Permitam-me fazer um exemplo observacional que resulta de várias idas a Centros de Saúde, Urgências, exames complementares de diagnóstico, por motivos pessoais. 

Quando a Comunicação não se faz com o Utente, mas apenas com o Computador

Atualmente, nenhum serviço de saúde público ou privado sobrevive sem um correto registo informático. Todos os profissionais de saúde registam nos computadores, podemos quase dizer que escrevem o que fizeram, disseram, prescreveram, e em alguns casos, escrevem-se autenticas histórias de ficção.  Neste artigo vou descrever um episódio em que eu era apenas um utente e observei. 

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Episódio num Serviço de Urgência em Portugal 

Ouve-se na sala de espera em tom de pregão o nome da senhora X, pela voz do médico que está de serviço. 

  • Médico- “Bom dia, você é que é a senhora X, pela foto ? -pergunta um médico, afastado dessa utente pelo menos 10 metros, que por acaso tem hipoacusia e sem nunca retirar os olhos do computador.
    • Senhora X –A senhora X não responde, pois não ouve, mas o médico não sabe e…
  • Ouve-se novo pregão em tom alto desta vez acrescenta na voz um tom de aborrecido…
    • Eu- Uma vez que estava ao lado dessa senhora levanto-me e aviso o médico que já escrevia no computador – “abandono de utente”
  • Médico- O Médico agradece e desloca-se efetivamente ao local onde a utente está para a observar. 
    • A Senhora X  descreve os seus sintomas ao Médico, que pede que aguarde  para regressar de novo ao computador para tudo registar. Os seus dedos retalham o teclado rapidamente e o COMPUTADOR esse grita e pisca em tons de vermelho…termina a comunicação com o utente!

Em todo este processo não higienizou as mãos nem antes nem depois de avaliar a utente e após concluir os registos no computador prescreveu um plano de tratamento, MAS não avisou a Utente do que iria fazer..

(Passam-se 15 minutos, e eu aguardo na sala com outros utentes) ao fundo ouço novamente em tom de pregão o nome da Senhora X, pela voz do Enfermeiro que na ausência de resposta procura em todas as caras a face que estava no computador e ajuda na identificação .

  • O Enfermeiro apresenta-se e avisa a Senhora X, dos procedimentos que irá realizar.
    • A Senhora X protesta e diz que ninguém falou com ela nem a informou do que lhe iriam fazer !
  • O  Enfermeiro responde e dá uma resposta que me tira  todo o sangue da face…
  • Voltemos á resposta do Enfermeiro, que está com pressa pois o COMPUTADOR  ao longe pisca em tons de vermelho.
  • Enfermeiro – Senhora X eu e o médico comunicamos por COMPUTADOR, o médico avaliou, e eu cumpro o plano terapêutico! …e afasta-se, sem explicar os efeitos da medicação prescrita nem o tempo de espera das ditas análises. 
  • Enfermeiro– Regressa a comunicação com o COMPUTADOR e os seus dedos voltam a martelar furiosamente o computador, tudo isto seguindo o exemplo do médico e não higienizou as mãos nem antes do contacto com o utente nem após. 

Técnicos de Saúde- Seguem-se os técnicos de Saúde que deambulavam pelo serviço a realizar vários exames complementares, sem nunca explicar porquê.  A  justificação perante a dúvida do utente era a mesma, o COMPUTADOR “diz” que tem que fazer este exame e continuam atarefados.

Passam-se 3 horas e a Senhora x e eu continuamos na sala à espera, ela vai falando comigo e eu como utente e profissional de saúde vou explicando que terá algum tempo de espera e tento com que  compreenda o plano de tratamento, que eu ouvi. A conversa persiste quer no tempo, quer no discurso que esta senhora já gasta pelo tempo me vai confessando: 

  • A Senhora X  constata que existem mais médicos naquela sala que enfermeiros e que eles e os auxiliares de enfermagem correm de um lado para o outro tal como bombeiros, mas que o vento não para,  e o incêndio,  esse, volta sempre a lavrar. Em todos estes profissionais a senhora X identifica um ponto comum diz-me :
    • ” Você já viu que eles  (médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos) não olham para os utentes, olham através deles (…).
  • Eu– No meu silêncio olho em redor e aceno com a cabeça dando-lhe toda a razão, e tento recordar se nos meus 9 anos de urgência, não terei eu sido mais um destes profissionais…

O tempo de espera não passa e muito se vê enquanto se espera, acumulam-se utentes que entram e ficam…Mas os profissionais de saúde vão vendo e ouvindo, olhando para as luzes vermelhas que piscam no COMPUTADOR. De repente  ouve-se  a expressão que um utente está a parar.

  • Apercebo-me do que se trata,  e vejo o stress acumulado com a adrenalina dos profissionais mais novos que acedem ao  local onde estaria o utente em paragem cardio-respiratória

Morte

O utente faleceu e o corpo permanece envolto em cortinas e o computador  volta ganhar vida novamente. Os registos estão feitos, a comunicação com os familiares não…

De regresso à Senhora X , recebe um telefonema são os filhos perguntam porquê tanta demora. Ela termina o telefonema e pergunta-me o que fazer.

EU–  Respondo-lhe que deverá falar ou com o médico ou com o enfermeiro que a estão a seguir, sou seu voluntário e desloco-me a ambos que teclavam lado a lado cada um em seu computador sem nunca falarem. Olham para mim e para a senhora X , dizem que já vão lá, regressa o a musica do teclado do COMPUTADOR!

Passa-se mais uma hora e ninguém vem falar com a Senhora X que me agradece, mas o COMPUTADOR é sempre ouvido. Ninguém conversa entre si-médicos, enfermeiros, técnicos de saúde e auxiliares comunicam com o dedo por um computador. Apregoam -se nomes na sala  de espera e o computador logo de seguida é utilizado.

Várias horas após as análises da senhora X surge um médico mais velho (presumi que fosse o chefe de equipa) que discute em viva voz com os colegas mais novos e diz que os tempos de espera são muito elevados. Regressam o médico e o enfermeiro , falam agora com a Senhora X , que vai ter alta,  e avisam tanto um como outro que leva 2 cartas para o médico e para o enfermeiro de família. 

Permitem aos familiares da Senhora X que entrem, ninguém falou com eles ainda… Eu,  mero espetador, fico com a impressão que a Senhora X não percebeu nada do que lhe disseram…

O familiar pergunta primeiro ao enfermeiro, depois ao médico, ambos respondem que já tinham escrito no COMPUTADOR e que qualquer dúvida os profissionais do centro de saúde podiam ver numa PDS ! A Senhora X abandona o SU e despede-se de mim. Enquanto caminham para a porta ouço algo que me faz sorrir…

Familiar da Senhora X – “Agora também existe Política na Saúde , vejam lá qualquer dúvida conseguem ver no PDS ….

NOTA para os leitores não profissionais de Saúde: PDS = Plataforma de dados da Saúde

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CONCLUSÃO

É este tipo de comunicação que queremos em saúde em que os profissionais de saúde são reféns dos sistemas de comunicação?  Não serão os sistemas de informação que devem servir a saúde ? Sou utente e profissional de saúde, comunico e registo muito com o computador, mas existimos pelos utentes. Permitam-me o desabafo, convido à reflexão pessoal. Acredito firmemente que é fundamental gostar da actividade profissional que exercemos, mas acredito  sobretudo que os profissionais que estiveram presentes neste episódio serão também reféns dos sistemas de informação, que surgem como apoio fundamental nos cuidados de saude, registo e quantificação das actividades realizadas, mas que cada vez mais condicionam o tempo com os utentes e para os utentes.

3 thoughts on “Profissionais de Saúde estão a tratar Computadores e não de utentes…

  1. Tem toda a razão. Todos os profissionais, sobretudo os da saúde – e talvez muitos mais – deveriam de tempos a tempos fazer cursos de reciclagem e actualização em comunicação que desde o início da informática são cada vez mais necessários… não só os médicos mas todos os profissionais. As relações interpessoais são extremamente importantes sobretudo na Saúde e na Educação. Pode crer que os médicos têm consciência disto. Mais uma vez em Portugal fazem-se óptimos planos no papel que não correspondem à prática. Planeamos, planeamos, planeamos quase tudo e somos muito bons a fazê-lo mas depois os planos morrem na praia, ao contrário de outros países que são muito mais pragmáticos. Bem haja pelo seu trabalho.

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  2. Excelente artigo, sim!
    Com efeito, tendencialmente assiste-se a uma cada vez maior burocratização dos sistemas de Saúde, por via do avanço tecnológico/informático, o que implica que os fracos recursos humanos existentes nos Serviços, a bem dizer, não atribuam a devida e tão necessária importância à comunicação, e, em particular, às relações interpessoais.
    A gestão do tempo no atendimento presencial, passa a ser um problema, porque o “indispensável” registo nas plataformas logísticas internas, consome muito tempo, em detrimento da função primordial do profissional de saúde, que é tão somente CUIDAR DO OUTRO, de forma condigna, “olhos nos olhos”, de forma segura, e com qualidade
    Felizmente que em Urgência/emergência os profissionais de saúde não passam cartão a “burocratices”, muitas delas, com carácter repetitivo, gerando duplicação de registos, de todo desnecessários.
    Muitos parabéns!

    Paula Pedro

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  3. Como enfermeira custa-me aceitar que perco tanto tempo a clicar teclas…num programa muito mal concebido, nada intuitivo em que metade seria automático, porque os cuidados preconizados são quase sempre os mesmos perante um diagnóstico de enfermagem…
    não contesto a importância dos registos – mas a informatização deveria facilitar e não “roubar” tanto tempo.
    E…”todos os cuidados foram prestados com o consentimento do utente” (até temos “que rematar” os registos assim em todos os turnos) 😦

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